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sexta-feira, 18 de abril de 2008

Alegoria do (foto) jornalismo da Caverna

Somália, Guerra Civil, 1993. Americanos iniciam a Operação Michigan. Helicópteros disparam 16 mísseis sobre a suposta casa do lider rebelde Aidid. A intenção da intervenção dos sempre mocinhos norte-americanos é combater a fome na Somália. Do Hotel Sahafi, o jovem fotógrafo inglês Dan Eldon, entre tantos outros correspondentes internacionais, assiste ao bombardeio. Passadas algumas horas, soldados de Aidid aparecem no hotel. Convocam os jornalistas a documentar o massacre. Eldon vai no primeiro veículo. No local, a cena é tensa: dezenas de cadáveres espalhados, corpos mutilados... e uma multidão furiosa.
O clima fica pesado e os jornalistas passam a ser o alvo do ódio dos sobreviventes. Dan tenta fugir, mas a multidão o cerca e o apedreja até a morte. Junto, mais três outros jornalistas. É o fim de uma carreira, é o fim de uma vida para o promissor fotojornalista de 22 anos da agência de notícias Reuters. Mas afinal, o que leva tantos jornalistas a arriscarem suas próprias vidas para registrar a história?
Recorro aos escritos de Platão, mais precisamente à Alegoria da Caverna, um diálogo entre Sócrates e Glauco. No mito, consta que homens acorrentados vivem dentro de uma caverna, onde nasceram e sempre moraram. De dentro da gruta, os indivíduos aprisionados não têm contato com o mundo externo. Há um muro que barra a saída da caverna e por onde passa o único feixe de luz que ilumina o local. Além do muro, outros homens, livres, mantêm acesa uma fogueira, de modo que suas sombras são projetadas na parede ao fundo da caverna. A realidade é para os aprisionados, assim, meras sombras.
Até que um dos acorrentados decide abandonar a limitada condição e fabrica um instrumento com o qual quebra os grilhões. Com dificuldade, o prisioneiro enfrenta muitos obstáculos até conseguir sair da caverna. Já do lado de fora, o recém-libertado descobre que as sombras eram feitas por homens como ele. Está livre dos grilhões. Mas então ele se lembra da primeira moradia e daqueles que foram seus companheiros de cativeiro. Lamenta por aqueles que lá ficaram na ignorância e decide voltar à caverna. O objetivo? O esclarecimento do próximo, o progresso.
Como conta a fotógrafa Jacqueline Artz no documentário Morrendo para contar a história (GNT, 1997), “Conhecer a realidade de uma guerra é um privilégio”. O (foto) jornalista que cobre e vivencia um conflito está mais perto da realidade, sai da caverna. E como se autolegitima, o jornalismo é um meio, justamente, de libertação da humanidade. O trabalho jornalístico é, portanto, o de voltar à caverna. O progresso está indissociável ao esclarecimento, ao fim da ignorância.
O que realmente leva um garoto de 22 anos a perder a vida – por mais confiante que Dan fosse, sabia dos riscos – para fotografar uma Guerra talvez esteja ligado ao sentimento de estar prestando um serviço público. Mas tudo isso é muito pessoal. Irresponsabilidade, ambição por um reconhecimento profissional ou o nobre ideal de esclarecimento? Não nos cabe julgar. A questão é outra:
A comparação entre o (foto) jornalista e o prisioneiro libertado no Mito da Caverna soa exagerado. Ou melhor, soa ingênuo. A foto é, sem dúvida, fundamental. Uma guerra sem registros fotográficos faz apenas vítimas numéricas. Do contrário, faz vítimas humanas. A foto tem, assim, a capacidade de sensibilizar, gerar tensão. E a sensibilização/tensão é o primeiro passo na estruturação cognitiva do indivíduo. Ou seja, a foto é, por que não?, um primeiro passo na mudança de atitudes e concepções das pessoas.
Na prática, porém, a foto assume um caráter mercadológico. Os interesses da indústria da informação se sobrepõem ao ideal iluminista de esclarecimento do indivíduo. Não basta o choque, é preciso o grotesco. A sensibilização dá lugar à insensibilidade. O que vale é a mutilação, o estado humilhante da vítima. O importante é alimentar a Sociedade do Espetáculo, termo cunhado pelo francês Guy Debord.
“Ás vezes me dou conta do quão insensível nós cinegrafistas somos”, é o que revela Mohamed Shafi, colega de trabalho de Dan Eldon. O comentário é sobre a experiência que o repórter teve ao filmar por 20 segundos dezenas de crianças em estado deplorável de saúde após explosões durante a Guerra Civil Somali.
O que deve ser relativizado é, portanto, o heroísmo do (foto) jornalista, como propõem alguns dos próprios correspondentes de guerra. Com 11 guerras nas costas, o jornalista da BBC Matin Bell foi ferido certa vez enquanto cobria uma guerra. “Acham que é heroísmo sair ferido. Isso é uma bobagem”, opina o repórter. Bell ainda ressalta que o profissional que cobre a guerra pode sair a qualquer momento do combate, o que não é permitido aos habitantes do país em guerra na maioria das vezes.
Quanto à proximidade do (foto) jornalista com a realidade, o também fotógrafo de guerras Carlos Mavrelon ressalta que “as lentes o mantém isolado da realidade”. Carlos explica ainda o quão frustrante é presenciar pessoas tão carentes de necessidades básicas que o repórter, com apenas um câmera na mão, não pode suprir. Já Bell é mais exagerado e compara a atuação do (foto) jornalista ao da ONU: “observa tudo e nada faz”, o que também deve ser relativizado.
Por um lado o (foto) jornalismo parece por vezes tão distante de se libertar dos grilhões da indústria da informação e agir como um prisioneiro libertado, como descrito por Platão. Por outro, ainda com todos seus defeitos exerce papel importante na sociedade ao denunciar as atrocidades de uma guerra. Tão contrário assim é o (foto) jornalismo: meio de progresso, mas ainda com muito a progredir.

2 comentários:

Leonardo Nascimento da SIlva disse...

A alegoria da caverna é a melhor coisa que conheço de Platão!

André, você é muito talentoso, viu?
Parabéns! Muito legal mesmo!

Quero ler coisas mais felizes também!
Sei que o mundo está em desordem, mas ainda há coisas boas!

grande abraço de alguém que te admira como pessoa e como pseudo-profissional também! Ihhh, ficou meio gay isso, né?
hahahhahahha

Carol disse...

Um dos grandes problemas do jornalismo de hoje em dia é que ele virou comercial. Mas ainda existem jornalistas que estão nessa pra denunciar(e porque não, como você mesmo disse, pra ter uma reputação).
Acho um absurdo quem diz que jornalista não pode ajudar quando está trabalhando. Prova disso foi o Correspondente de Guerra Kevin Sites, ele foi cobrir um bombardeio, tirou suas fotos e ao acabar de reportar o acontecimento, ajudou a tirar pessoas dos escombros.
Somos jornalistas sim, mas acima de tudo seres humanos.
Adorei seu post, muito bom mesmo.